Homilia na Solenidade do Corpo de Deus

 

Sé de Beja, 11 de junho de 2020

 

Caríssimos padres e diáconos, religiosos e religiosas, seminaristas e fiéis leigos, caros irmãos e irmãs:

Há sete séculos e meio, concretamente desde o ano de 1264, a Igreja celebra a festa do Corpo de Deus, ou seja, a solenidade do Corpo e Sangue de Cristo. Este acontecimento festivo tornou-se expressão da fé católica na presença real de Cristo no pão e no vinho consagrados, mesmo depois da celebração. Na tarde deste dia, o pão consagrado na Eucaristia é levado em procissão pelas ruas de cada cidade, vila ou aldeia. A procissão do Corpo de Deus tornou-se, assim, uma manifestação exterior da realidade espiritual que constitui o âmago profundo da vida da Igreja: a sua união de amor esponsal com Cristo.

Neste ano em que a pandemia nos impede de exteriorizar pelas ruas da nossa cidade de Beja, este amor a Cristo e a adoração que Lhe é devida como a Deus que verdadeiramente é, convido-vos, caros irmãos e irmãs, a meditar, ainda que brevemente, neste mistério do amor do Senhor pela Sua Igreja, e da Igreja por Ele, seu Esposo.

1 – Adorar a Deus e amá-l’O sobre todas as coisas é o Primeiro Mandamento da Lei, é a base e o cume da vida cristã: Adorar significa levar a mão à boca, ou seja, admirar-se e deslumbrar-se perante a beleza e a glória, a majestade e a grandeza, a verdade e a caridade de Deus manifestadas, antes de mais, na criação do universo e na história do povo de Israel, e sobretudo, na Encarnação do Seu Filho para libertar o mundo da morte e do pecado, pela Sua morte e ressurreição. 

Adorar a Deus é o primeiro mandamento, aquele com o qual todos os outros se cumprem, aquele sem o qual nenhum dos outros se pode realizar plenamente. A fé cristã começa e acaba, digamos assim, nesta expressão estética da adoração, anterior à resposta moral e a uma adesão da inteligência, as quais, naturalmente, vêm depois, ao experimentar-se a bondade e a verdade do Senhor.

Na Sagrada Escritura, vemos que Deus sempre começa por revelar o esplendor da Sua glória àqueles que chama a desempenhar uma missão concreta. Esses prostram-se diante de Deus para O adorar. Outra reação simultânea daquele a quem Deus Se manifesta é o temor, é o sentimento de ser indigno de ver e de conhecer a Sua santidade e, por isso, as atitudes de fazer-se pequeno ajoelhando e prostrando-se diante d’Ele acompanham habitualmente a adoração. Sem adorarmos a Deus em cada dia, Ele desaparece da nossa existência, deixando espaço para que nela cresçam os ídolos, os falsos deuses a quem adoramos e pedimos a Vida que só o Senhor nos pode oferecer.

A vida e as ações de Jesus neste mundo brotaram dessa adoração contínua que, sendo o Seu relacionamento habitual com o Pai, era resposta Sua ao testemunho que Este Lhe dava: Tu és o Meu Filho muito amado, o enlevo da minha alma! Também a nossa vida aqui na Terra, dom do Pai e caminho para o Pai, só se realizará plenamente se for expressão desse deslumbramento de sermos filhos adotivos que nos faz viver em adoração a Deus, Pai, Filho e Espírito Santo. A Igreja ensina-nos a adorar o Senhor Jesus Cristo, Deus verdadeiro e Filho único de Deus que, na Virgem Maria, assumiu um corpo humano, o Corpo de Deus, visível aos nossos olhos.

Queridos irmãos e irmãs: contemplar este imenso e profundíssimo mistério do amor que o Senhor nos tem, como que nos dá vertigens! E a adoração é a primeira resposta daquele que crê, é o começo da fé. Se não adorais o Senhor, perguntai-vos, meus irmãos, que espécie de fé é a vossa, que espécie de relacionamentos tendes para com Ele. Adorar a Deus, é praticar atos de amor para com Deus, é oferecermo-nos a Ele em cada dia, é viver a partir d’Ele e para Ele.

2 – Para amarmos alguém precisamos de O conhecer. Para amarmos e acreditarmos em Jesus e esperarmos o cumprimento das suas promessas, precisamos de O conhecer com o conhecimento da Fé, da Fé que nasce de se escutar o anúncio, o Querigma, de Jesus.

Como São Paulo insiste em fazer e recomenda nas suas cartas que se faça, também hoje eu sinto o desejo e o dever de vo-l’O anunciar, de vos lembrar o Seu percurso. Fazendo-o, ajudar-vos-ei a amar, a esperar e a acreditar no Senhor, a adorá-l’O e a viver para Ele. A vida cristã outra coisa não é senão seguir o Senhor Jesus Cristo, pôr os pés nos Seus próprios passos, termos entre nós os Seus mesmos sentimentos, nada fazendo por rivalidade nem por vanglória, mas tudo com humildade.

Ele, sendo Deus, não Se apegou avidamente à Sua dignidade, mas, por nosso amor, tomou a condição humana e fez-Se homem. Feito homem em tudo igual a nós, exceto no pecado, assumiu a condição de Servo obediente até à morte e morte de Cruz. Crucificado, desceu aos infernos da condição humana, e o Pai amoroso, que por nosso amor não O poupou aos sofrimentos, ao desprezo do povo e à morte, ressuscitou-O dos mortos e deu-Lhe o Nome mais alto que existe, o nome de Senhor. Ressuscitado, ou seja, liberto das limitações da condição humana mas não da própria condição humana que assumira, e glorioso no Céu onde à direita do Pai intercede por nós, quis ficar connosco na terra, feito pão e vinho, feito coisas que se podem comer e beber. Deus, homem, servo, coisa. Este é o resumo do percurso de Jesus Nosso Senhor, percurso que Ele nos oferece para regressarmos ao Pai, fonte e origem de tudo o que existe.

Oh imenso amor de Deus por nós! Oh abismo de humildade, extraordinário dom da caridade divina para connosco! Como poderemos corresponder ao vosso amor? Adorando-Vos, dando testemunho público de Vós, levando-Vos em procissão por estas nossas praças e ruas que percorremos diariamente, aprendendo a conhecer e a obedecer aos vossos mandamentos, fazendo assim da nossa vida um percurso de amor fraterno, uma procissão que nos leve deste mundo para a glória do Pai.

3 – A Eucaristia é memorial da Páscoa do Senhor. Memorial significa lembrança, certamente, mas tem um dinamismo pelo qual realiza hoje as mesmas ações de antigamente. Assim como a Páscoa libertou do Egito o antigo povo de Israel, assim como Jesus Cristo passou da morte para a Vida, a celebração da Eucaristia realiza, aqui e agora, a Páscoa naqueles que a celebram e vivem.

Em que consiste essa passagem? Ouvimos Jesus dizer no Evangelho: Quem come a minha carne e bebe o meu sangue permanece em Mim e Eu nele. Assim como o Pai, que vive, Me enviou, e Eu vivo pelo Pai, também aquele que Me come viverá por Mim. Pergunto-me, caros irmãos, se as comunhões sacramentais que fazeis vos levam realmente a viver por Cristo. De facto, quem comer deste pão e beber deste vinho tem a Vida eterna e, vivendo ainda neste mundo unido ao Senhor, passa com Ele da morte para a Vida. Deixa de ser egoísta e de viver para si mesmo e, porque venceu a morte, vive em comunidade amando os irmãos, como São Paulo afirma na 2ª leitura que escutámos há momentos: não é o pão que partimos a comunhão com o Corpo de Cristo? Visto que há um só pão, nós, embora sendo muitos, formamos um só Corpo porque participamos do mesmo pão. De facto, é comungando o Corpo do Senhor que cultivamos a comunhão fraterna.

Que sentido faz, queridos irmãos, ir comungar o corpo de Cristo estando de relações cortadas com os irmãos e sem ter tentado, seriamente, reconciliar-se com eles? Também é errado que alguém se aproxime para receber a comunhão do Corpo do Senhor se não se arrependeu dos seus pecados e os confessou, reconciliando-se com a Igreja. A comunhão, como os outros sacramentos, recebe-se. Recebe-se por misericórdia do Senhor, e não por nosso mérito próprio. Quem não vive caminhando no deserto para a terra prometida e permanece escravo no Egito, adorando os seus ídolos, não pode comungar o Corpo do Senhor. A Eucaristia está significada naquela festa que o povo de Israel celebrou no deserto, quando saiu da terra do Egito, e no maná, naquele pão desconhecido no Egito que o Senhor deu ao Seu povo durante os quarenta anos que peregrinou pelo deserto, até chegar à Terra Prometida. Como precisamos de corrigir tantas práticas erradas a respeito da Santíssima Eucaristia, práticas tão comuns nas nossas comunidades!

4 – Espero e desejo muito, queridos irmãos e irmãs, que o Senhor faça crescer em vós a vida cristã para que tenhais um coração verdadeiramente eucarístico, um coração que, por levar dentro de si o mesmo testemunho que o Pai deu acerca de Seu Filho: Tu és o meu filho muito amado, o enlevo da minha alma, é um coração agradecido ao Senhor.

Que nos diz a criação inteira? Que Deus é amor! E toda a Sagrada Escritura? Que Deus é amor! E que leva a Igreja a celebrar a Eucaristia em cada domingo e em cada dia? A necessidade de vivermos eucaristicamente, de coração agradecido a Deus que nos ama, fonte de todos os outros nossos relacionamentos com os irmãos, com o mundo, com a natureza.

Lembrais-vos, caríssimos irmãos, do convite que vos fiz na homilia do dia de Páscoa? Convidei-vos a participar mais ativamente na Eucaristia e a convidardes outras pessoas, vossos familiares ou vizinhos, a virem convosco. Terminado o tempo do confinamento, é a hora de retomarmos o ritmo semanal da Missa do domingo. Não tenhais medo de vir à Igreja! Todos precisamos de comer o Corpo de Cristo para podermos viver como filhos de Deus. Não é a mesma coisa, quando se tem fome, ver os outros comerem ou sentarmo-nos à mesma mesa para comermos com eles. Não é a mesma coisa vermos os outros celebrarem a Eucaristia ou estarmos com eles na mesma celebração. Se somos cristãos, não podemos viver sem celebrar a Eucaristia, sem a Missa dominical. Celebremos a Eucaristia para vivermos eucaristicamente, para sermos herdeiros da Vida Eterna que o Senhor nos prometeu.

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