«Sabemos que passamos da morte à vida porque amamos os irmãos» (I Jo 3, 14). Terminava, assim, o meu último texto. O amor, para além de ser a marca distintiva dos cristãos, é a sua prática que nos garante a vida eterna. Só a força do amor nos permite o encontro com o Ressuscitado. Não só após a morte, mas, desde já, em cada acontecimento da nossa vida terrena. Impulsionados pela energia transcendente que adquiriram ao acreditarem no Ressuscitado, os primeiros cristãos viviam muito unidos, de tal forma que «ninguém chamava seu ao que lhe pertencia, mas tudo entre eles era comum (…). Não havia entre eles qualquer necessitado (…). Distribuía-se então a cada um conforme a sua necessidade.» (Act 4, 32-35). Em suma, viviam todos como irmãos. Aqui reside a essência do cristianismo que torna diferente a visão que se tem entre solidariedade e caridade. A solidariedade é um dever cívico. É uma das marcas da prática da cidadania exercida como um dever assumido com a «determinação firme e perseverante de se empenhar pelo bem comum; ou seja, pelo bem de todos e de cada um, porque todos nós somos verdadeiramente responsáveis por todos» , na extraordinária interpretação de S. João Paulo II. Para os romanos esta atitude traduzia-se no pagamento de uma dívida por alguém contraída, ou para se referirem a algo que teria de ser sólido e consistente. Utilizavam a palavra “solidus” para designarem estes procedimentos. Para os cristãos o empenho pelo bem de todos e de cada um não é apenas um dever, mas uma obrigação. Faz parte da sua identidade de filhos de Deus, de irmãos de Jesus Cristo¬ - por Ele, irmãos uns dos outros - de recetores do Espírito Santo, veículo do amor puro e verdadeiro. Esta realidade não se reduz a um preceito religioso, mas revela-se como intrínseca ao modo como se é e como se vive. Por isso, acontece que há quem proceda como cristão sem se identificar como tal e, em contrapartida, há quem pratique todos os ritos da confissão religiosa cristã a que diz pertencer, sem levar para a vida as consequências que decorrem da religião que professam. Assim, para os cristãos a palavra mais adequada para referir o amor que devem ter ao próximo é caridade e não tanto solidariedade. Muitos evitam a utilização da palavra caridade, porque sabem que ela é mal-aceite pelo comum das pessoas. Umas por não saberem que ao dizer caridade se estão a referir ao amor; outras por não gostarem de muitas atitudes desrespeitadoras da dignidade do ser humano, tidas em nome da caridade. S. João Paulo II utilizou mais a palavra solidariedade, muito bem explicada na sua Carta Encíclica “Solicitude Social da Igreja”. Bento XVI optou pela palavra caridade, desde o início do seu pontificado, dedicando-lhe duas ricas Encíclicas: “Deus é Amor” e a “Caridade na Verdade”. Preocupou-se mesmo com a organização da caridade ao nível de cada Diocese e Paróquia com a publicação do Motu Proprio “Intima Ecclesiae Natura”, no qual afirma que «A Igreja é chamada à prática da diakonia da caridade também a nível comunitário, desde as pequenas comunidades locais passando pelas Igrejas particulares até à Igreja universal; por isso, há necessidade também de «organização enquanto pressuposto para um serviço comunitário ordenado» . É pena que a Igreja, em Portugal, ainda não tenha posto em prática esta norma canónica. O Papa Francisco tem-se preocupado, com a simplicidade das suas palavras, autenticadas pelos seus gestos, em ajudar-nos a viver a caridade a partir de realidades quotidianas muito concretas. O seu grande anseio é ajudar o mundo a ser mais fraterno. Para entendermos como isso está ao alcance de cada um de nós há que ler a extraordinária Carta Encíclica “Fratelli Tutti” sobre a Fraternidade e a Amizade Social. O texto é de leitura muito acessível. Como seria importante que nenhum cristão católico se dispensasse de a ler e que os grupos constituídos nas nossas paróquias dedicassem, pelo menos a primeira meia hora das suas reuniões, durante este tempo pascal, à leitura e meditação de alguns trechos dessa Encíclica! Segundo Francisco, a construção da fraternidade exige audácia e criatividade para que sejamos capazes de responder, com verdade, sempre que nos for feita uma das perguntas primordiais de Deus: “Onde está o teu irmão?” (Gn 4,9). O primeiro passo, não se cansa o Papa de o referir, é a criação de condições para que se vá germinando a “cultura do encontro”. As pistas para que isso seja alcançável são: «Aproximar-se, expressar-se, ouvir-se, olhar-se, conhecer-se, esforçar-se por entender-se, procurar pontos de contacto: tudo isto se resume no verbo “dialogar”» , escreve o Papa. Olhar o outro como irmão não é fácil, mas sem isso não se pode conhecer e amar a Jesus Cristo (cfr. Mt 25).
Eugénio Fonseca Presidente da Confederação Portuguesa do Voluntariado