A articulação entre a trilogia passado, presente e futuro, sempre foi uma preocupação que acompanha a grande maioria das religiões. Fundamentalmente, a relação entre presente e futuro cria dinâmicas no plano religioso e não só, a que se chama profetismo. Nos casos das religiões judaica e cristã esta preocupação tem sido uma constante ao longo da história de cada uma com o cuidado de se evitar o risco de confundir profetismo com adivinhação. Muito menos se poderá comparar profetismo com as já aludidas práticas esotéricas. As profecias autênticas são suscitadas pelo Espírito Santo como se pode constatar nesta passagem do Livro do Números: «o Senhor desceu na nuvem e falou-lhe (Moisés); tomando do Espírito que estava sobre ele, deu-o aos setenta anciãos. Quando o espírito repousou sobre eles, profetizaram.» (Num 11, 25). Por isso, a profecia não pode ter como motivações críticas gratuitas, ressabiamentos egocentristas, busca de protagonismos exibicionistas, porque o Espírito divino está ausente destes comportamentos. Esta minha reflexão está a ser apoiada num livro extraordinário que foi publicado, recentemente, e aconselho a ler aos mais interessados em aprofundar este tema. Tem por título “Profetas e Profecia em Israel”, da autoria do Professor Pe. João Duarte Lourenço, docente na Faculdade de Teologia de Lisboa da Universidade Católica Portuguesa, sendo a sua publicação da responsabilidade da Editora desta Universidade. Para melhor se compreender a reflexão que procurei fazer até agora, refiro apenas três breves passagens das muitas interessantíssimas que contém este livro. São as seguintes: «Os profetas ocuparam-se de todos os aspetos da vida social, religiosa e política do seu tempo, tanto a nível nacional, como até, em alguns deles, no âmbito internacional.» (pg.79). S. Tiago, apesar de não ser considerado um “profeta-escritor” tem rasgos proféticos em muitas das afirmações da sua Carta, como esta: «E agora, vós, ó ricos, chorai em altos gritos, por causa das desgraças que virão sobre vós.» (Tg 5, 1). Outra citação muito interessante: «O profeta não é um homem fechado, nem fugido ao tempo nem ausente do seu mundo. Pelo contrário, ele é um paladino da abertura ao mundo exterior que o rodeia e um “contemplativo” da história que o envolve. (…) o profeta não é um adivinho da história, nem um mágico de futurologia; ele é um crente e um mensageiro da esperança que leva à plenitude.» (pg. 79 e 82). Foi neste sentido que Jesus admoestou os seus discípulos quando eles o vieram avisar de que havia quem andasse a fazer milagres em nome Dele: [«Não o impeçais; porque não há ninguém que faça um milagre em meu nome e vá logo dizer mal de Mim. Quem não é contra nós é por nós.] (Mc 9, 39-40). O profeta é alguém que revela aptidões especiais para o discernimento; tem um profundo conhecimento das realidades, em várias áreas, do seu tempo; consegue manter um distanciamento crítico e uma notória autonomia; coloca-se do lado dos fracos; denuncia com a palavra e o testemunho; não cala a falta de autenticidade que, muitas vezes, se revela em determinados cultos religiosos. Mas, também, o verdadeiro profeta não passa imune a ataques de todo o género: são perseguidos, traídos, postos, constantemente, em questão, difamados, colocados sob suspeitas escabrosas. Estas caraterísticas e consequências aplicam-se a qualquer tipo de profetas. Temos a sensação de que estamos num tempo com escassez de verdadeiros profetas, como foram, entre outros, Martin Luther King Jr., Nelson Mandela, Teresa de Calcutá, Helder da Câmara, António Ferreira Gomes, Conceição Moita (conhecida por Xexão), só para citar alguns na nossa era. Mas, hoje, também, os há no mundo e no nosso país. Mas esta missão compete a todos. No âmbito cristão, pelo batismo tornamo-nos “sacerdotes, profetas e reis” (Cfr. 1 Pedro 2, 4-10). Já Moisés em resposta a uma queixa de Josué a propósito de dois homens que andavam a profetizar, afirmou: «Quem dera que todo o povo do SENHOR profetizasse, que o SENHOR enviasse o seu Espírito sobre ele!». (Num 11, 29). Reconheço que nem todos poderão ter esse carisma para este desempenho, mas o que todos os cristãos têm o dever é de não serem, como muitas vezes acontece, os primeiros a maltratar os que, impelidos pelo Espírito, profeticamente, anunciam o Reino de Deus, a partir das realidades do seu tempo. Eugénio Fonseca Presidente da Confederação Portuguesa do Voluntariado