ESPIRITUALIDADE SACERDOTAL

INTRODUÇÃO

Oiçamos S. Paulo na Carta aos Efésios 1, 3- 23.

«Bendito seja o Deus, Pai de Nosso Senhor Jesus Cristo, que nos altos céus nos abençoou com toda a espécie de bênçãos espirituais em Cristo. 4. Foi assim que Ele nos escolheu em Cristo antes da fundação do mundo, para sermos santos e irrepreensíveis na sua presença no amor. 5. Predestinou-nos para sermos adotados como seus filhos por meio de Jesus Cristo […] 7. É em Cristo, pelo seu sangue, que temos a redenção, o perdão dos nossos pecados, em virtude da riqueza da sua graça, 8. que Ele abundantemente derramou sobre nós, com toda a sabedoria e inteligência.9. Manifestou-nos o mistério da sua vontade, e o plano generoso que tinha estabelecido, 10. para conduzir os tempos à sua plenitude: submeter tudo a Cristo, reunindo nele o que há no céu e na terra. 11. Foi também em Cristo que fomos escolhidos como sua herança, […] 12. para que nos entreguemos ao louvor da sua glória, nós, que previamente pusemos a nossa esperança em Cristo. 13. Foi nele, ainda, que vós ouvistes a palavra da verdade, o Evangelho que vos salva. Foi nele ainda que acreditastes e fostes marcados com o selo do Espírito prometido, 14. o qual é garantia da nossa herança, para que dela tomemos posse, na redenção, para louvor da sua glória. […] 17. Que o Deus de Nosso Senhor Jesus Cristo, o Pai a quem pertence a glória, vos dê o Espírito de sabedoria e vo-lo revele para o conhecerdes; 18. Sejam iluminados os olhos do vosso coração, para saberdes que esperança vos vem do seu chamamento, que riqueza de glória contém a herança que Ele nos reserva entre os santos […]»

Possa este texto iluminar a nossa reflexão sobre a espiritualidade sacerdotal, e que ela possa ser fonte de alimento da sua missão eclesial.

 

 1. Eleitos e predestinados à glória

Nos céus, isto é, na eternidade divina, na fidelidade do amor que abraçará todo o criado, toda a humanidade é eleita a participar da glória divina. É abençoada, ou seja, a glória – o peso (Kabod) do amor divino – envolve-a.

A eterna eleição divina, a escolha em Cristo e n’Ele a predestinação para sermos filhos de Deus, é dom e um eterno convite à comunhão. E toda a criação está gemendo em dores de parto, acrescenta S. Paulo, em Rm 8, 18ss, até à plenitude de Cristo, à manifestação definitiva do amor Trinitário. Será o Verbo Encarnado e Ressuscitado a inserir-nos na adoção filial em Deus, na liberdade vivida em esperança como força da fé em experiência de amor.

Cristo, Verbo Encarnado, revela por Palavras, Sinais e Prodígios que a bênção divina é n’Ele definitivamente, escatologicamente, salvífica: é oferta gratuita do chamamento à glória, à liberdade comunional do amor.

Oferta, que é convite, enquanto acto livre de amor divino a proporcionar uma resposta e uma aceitação da liberdade finita da humanidade.

Outrora, Deus convidara o povo de Israel a escutar a sua Palavra pela boca dos Profetas, mas com o seu Verbo Encarnado introduziu definitivamente na história humana a presença viva da comunhão com o perdão do pecado, com o alimento da sua própria vida, com a liberdade de amar com o amor que Deus é.

Este convite revela-o Jesus Cristo na sua relação com o Pai. Jesus é oração, e é na Oração de Jesus que a Igreja é gerada (Lc 6 12-17).

Jesus, a segunda Pessoa da Trindade, a única que encarnou e se entregou ao Pai e aos homens, é oração, porque é relação pessoal de comunhão de Pessoas: do Pai que eternamente gera o Filho e do Filho que eternamente se entrega ao Pai no Espírito que de ambos procede – o Espírito Santo.

É S. João que mostra este dinamismo de entrega no seio da Trindade quando escreve que o Verbo eternamente se entrega ao Pai (prós tòn Theón). A proposição prós, seguida de acusativo, indica movimento. É estar junto do Pai ou no Pai, como normalmente se traduz, mas em eterno movimento de Amor. Daí que de ambos – Pai e Filho – proceda o amor pessoal, o Espírito de Amor, logo: o Espírito Santo.

E, porque o plano de Deus abraça a história, o Amor santificante está eternamente presente no desígnio divino; e Jesus Cristo insere-o na história na Hora definitiva da salvação a Hora da morte na cruz por nós (hupèr hemõn).

A sua presença na história é a presença da eterna oração Trinitária, do eterno movimento de amor em Deus, a eterna oração. A Trindade é oração.

E, quando na hora da morte de Jesus na cruz ele diz – segundo S. João 19, 30 – “«Tudo está consumado», e, inclinando a cabeça, entregou o Espírito”, não significa morreu, mas antes entregou o seu Espírito à Igreja.

 

 

 2. O chamamento em Cristo

«Vem e segue-me», diz o Senhor àqueles que, desde o Batismo no Jordão e da palavra do Batista - «Eis o Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo» - se sentiram atraídos.

 «Mestre, onde moras?»

«Vinde e vereis» (Jo 1 39)[1]

«Vinde» decidi-vos, abri o vosso coração e renunciai a vós próprios.

«Vereis» que há uma morada. É a minha contínua entrega ao Pai por vós – a minha oração. É nela que os discípulos passarão a conhecer o Mestre, vendo-O rezar.

Discípulos seremos todos nós, e fomos chamados a viver em intimidade com o Senhor, isto é, na sua oração, no seu coração.

E dessa intimidade serão enviados em missão, a anunciar o amor a Deus e aos irmãos; a construir um mundo onde reine a ação salvífica de Deus.

Entre os discípulos, porém, o Senhor escolheu Doze, e convidou-os a permanecerem com Ele, para os enviar a pregar com poder de expulsarem os demónios. Chamou-os a saírem de si e a verem atentamente como Jesus vive a relação com o Pai. Chamou-os a aprenderem que Deus é Uno e Trino. Essa, a morada de Jesus: Pessoa e missão reveladora da Trindade        .

Há aqui uma especificidade: todos os discípulos são enviados a partir da intimidade com o Senhor da sua relação com o Pai, mas os Doze são enviados com poder de pregar e de expulsar os demónios, isto é, de participarem na missão do Mestre: salvar e santificar.

S. João esclarece esta distinção entre o envio de todos os discípulos e o dos Doze, com dois verbos em grego, ambos traduzidos por enviar: pempein e apostelein. O primeiro refere o envio em intimidade com o enviante, e aplica-se a Jesus e aos Discípulos; o segundo, aplica-se a Jesus e aos Doze, pois acrescenta à intimidade relacional, a autoridade e missão específica de poder ensinar, perdoar e santificar.

Insisto sempre neste ponto que me parece fundamental para refletir sobre a missão dos Apóstolos, dos seus sucessores – os bispos – e dos que com eles estão ligados, os sacerdotes, ligados ao Bispo como «ligadas estão as cordas à cítara», no dizer de Santo Inácio de Antioquia na Carta aos cristãos de Éfeso.

A espiritualidade sacerdotal nasce desta palavra tão clara em Mc 3, 14s: «Estabeleceu Doze para estarem com Ele e para os enviar a pregar com o poder de expulsar demónios». 

A intimidade com o Senhor é o primeiro passo eclesial e ministerial. Ver Jesus em oração, em intimidade Trinitária, permite aos Apóstolos conhecê-lo e conhecerem-se a si próprios. É a eles que Jesus pergunta: «quem dizem os homens que é o Filho do homem? […] E vós, quem dizeis que Eu sou?» (Mt 6, 15s).

Simão, que, apesar da fraqueza que descobre em si, tem observado a silenciosa intimidade de Jesus com o Pai, responde: «Tu és o Messias, o Filho de Deus vivo».

«És feliz, Simão, filho de Jonas, porque não foi a carne nem o sangue que to revelou, mas o meu Pai que está no céu. Também eu te digo: Tu és Pedro e sobre esta pedra edificarei a minha Igreja e as portas do abismo nada poderão contra ela. Dar-te-ei as chaves do Reino do Céu; tudo o que ligares na terra será ligado no céu e tudo o que desligares na terra será desligado no céu» (Mt 6 16ss).

Na declaração feita a Pedro de sobre ele edificar a Igreja revela-se a sua estrutura institucional e a ação do Espírito de Deus presente na convivência com o Senhor a inspirar a confissão cristológica.

 

 

 

 3. A proto Igreja

A pedra forte como rocha, mas, por vezes, ainda fraca na sua fé, sobre a qual a Igreja será construída, ignora, porém, que uma igreja pura e santa foi já eternamente gerada num silêncio oculto em Deus, mas já quebrado, anos antes, no sim de Maria, e já na vida pública de Jesus, nas Bodas de Caná: «Façam tudo o que Ele vos disser».

Cheia de graça – nome com o qual o Anjo a saúda – anuncia a ação do Espírito que a cobre como o coração da nuvem na qual Deus se revelou no Sinai; Mulher – chamar-lhe-á Jesus, nas Bodas de Caná e do alto da cruz.

Maria é a jovem judia, a filha de Sião prometida a José, mas eleita no eterno desígnio de Deus para Mãe do Redentor do género humano, para ser a Nova eva, a Igreja na sua pureza, que gera os filhos de Deus redimidos na morte, ressurreição e envio do Espírito Santo.

Maria é a proto Igreja eternamente cheia de graça para dar à luz o Filho de Deus encarnado; e é a Mulher para alargar a sua maternidade a toda a Igreja. Desde que João a acolhe em sua casa, que é o local de reunião dos Apóstolos, Maria está lá em silêncio orante. Não mais se escuta uma palavra sua. Aliás, já dissera tudo, já lavrara o seu testamento:

«Fazei tudo o que ele vos disser».

Maria está presente entre os Apóstolos, entre Pedro, a rocha da Igreja, e João, o contemplativo do amor divino,

mas, escreveu um dia Hans Urs von Balthasar, como Mãe atenta, unificante, proporcionou que não nascessem duas Igrejas: a institucional, de Pedro, e a espiritual, de João, mas uma só, porque Ela, a acolhedora do Espírito Santo era expressão viva e pura de amor comunional, o cerne da espiritualidade sacerdotal.

 

 4. Maria e a missão apostólica

Quando o Espírito Santo desce sobre Ela e os Apóstolos no Cenáculo, eles partem a anunciar a ressurreição do Senhor, a Boa Nova da libertação e da comunhão. E todos escutam este anúncio veemente e entendem nas suas línguas, como refere o Livro dos Actos dos Apóstolos.

Maria permanece no silêncio, que é fonte de vida e de ousadia apostólica.

A espiritualidade dos Apóstolos, dos seus sucessores e dos que são ordenados para a missão evangelizadora têm em Maria a Mãe de uma espiritualidade séria e consistente.

Algumas propostas para a vivência dessa espiritualidade:

Primeira: olhar para Maria. «Vinde e vêde».

Totus tuus – era o lema do papa S. João Paulo II.

Olhar para Maria é acolher ser continuamente gerado no seio puro da Igreja, para cumprir o testamento deixado por Ela nas Bodas de Caná. Olhar para a Mãe de Deus é permanecer na escuta, na obediência e na observância da eterna oração Trinitária de Jesus Cristo, sem a qual a missão sacerdotal corre o risco de soçobrar às fraquezas humanas e à influência do século.

Segunda: pedir-lhe e consentir que Ela ajude a libertar-se da solicitude de si próprio. De coração aberto, escutará o Espírito Santo – alma da sua alma. Escutará no silêncio orante que Maria lhe ensinará sempre carinhosamente.

E, talvez, tal como no Tabor, no seu rosto de sacerdote o povo de Deus possa vislumbrar a felicidade de o servir, a alegria de ter sido chamado a dinamizar na terra o Reinado de Cristo e a preparar os cristãos para o Reino eterno, para a comunhão de Plenitude - «quando Deus for tudo em todos» 81 Cor 15, 27ss).

Terceira: Se no Filho consubstancial ao Pai o homem toca Deus, no sacerdote deve o homem descobrir o júbilo de conduzir para Deus o rebanho que lhe está confiado. Possivelmente, bastas vezes aí surgirá a cruz a abraçar com a graça misericordiosa de Deus. Daí, a importância de ver no sacerdote o homem espiritual, orante e concentrado em ser o exemplo do povo de Deus, pronto a converter-se sempre que as fraquezas surgirem, e a ser homem de esperança, a fé que mais espanta Deus, como escreveu Péguy[2].

Quarta: que tenha em conta, no acompanhamento espiritual dos cristãos, alguns sábios conselhos dados por santos experientes como Santa Teresa d’Ávila[3] ou S. João da Cruz[4].

Por exemplo, santa Teresa aponta quatro qualidades desejáveis no sacerdote, e uma no acompanhado:

*que seja um homem de doutrina

*que seja animado por uma autêntica vida espiritual e tenha um bom discernimento

*que seja experiente no acompanhamento e na arte de o executar

*quanto ao acompanhante, que ele abra confiadamente o seu coração

Santa Teresa insiste e põe em relevo a preparação doutrinal do sacerdote, porque a considera garantia de objetividade. S. João da Cruz, por sua vez, insiste no critério da razão esclarecida pelo Evangelho, porque não é o argumento da autoridade que prevalece, mas é a verdade discernida pela razão à luz do Evangelho.

Na obra Viva Chama de Amor, conta uma parábola: Há três cegos que podem desviar do caminho de união com Deus: o mestre espiritual; a pessoa que procura o mestre; e o demónio.

O mestre espiritual é cego se procura dirigir de acordo com os seus pontos de vista, porque não sabe ver a ação transcendente de Deus; a pessoa que procura orientação é cega se procura orientar-se só por si, pela própria razão; e o demónio, sendo cego, procura cegar. Logo, é necessário um guia de cegos que é o Espírito Santo, para evitar que «o cego, conduzindo o cego, caiam ambos no precipício (Mt 15 14).

Santa Teresa lembra ainda que para discernir os caminhos da transcendência divina, é necessário: comunhão com o foro íntimo, com a Igreja e com o Evangelho. No apoio do ensino da Igreja, evita cair no subjetivismo e a não se encontrar na comunhão eclesial: e no apoio no Evangelho, redigido para uma comunidade, evita interpretações individualistas e encontra a comunhão consigo, na oração em Cristo, com o Evangelho e com a Igreja no amor do próximo.

 

5. O coração sacerdotal

«O que recebi do Senhor, Também vos transmiti» […] (1 Cor 11, 23-33).

O coração sacerdotal é eucarístico, e, na escuta obediente, que é a fé, transmite o que recebeu: a vida em Deus.

Vida agradecida e vida partilhada no centro da oração de Jesus: a sua entrega ao Pai e aos homens.

Consagrados pelo ministério do Bispo para participar de modo especial no sacerdócio de Cristo, é na Celebração Eucarística que oferecem sacramentalmente o sacrifício de Cristo, no qual estão unidos sacramentalmente.

A Assembleia Eucarística é o centro da comunidade cristã presidida pela autoridade ministerial de construir a Igreja. A Palavra de Deus anunciada, o Sacramento de ação de Graças eucarístico e a pastoral estão em estreita união com toda a igreja presidida pelo Bispo diocesano que recebeu a plenitude do Sacramento da Ordem.

Todos, entregues ao Apostolado único da Igreja, entregam aos crentes o que receberam; ouvintes da Palavra, proclamam-na, e, chamando à conversão os não crentes ou os que procuram crer, obedecem à voz do Senhor que um dia disse «lançai as redes» (Lc 1, 5).

Pescar é, escreveu S. Jerónimo, «tirar o peixe da água e das goelas da morte e da noite sem estrelas».

Ser pescador de homens é dar-lhes parte da vida que não tem fim.

O coração sacerdotal é, então, um coração livre.

Só a liberdade eterna de Deus vivida na oração de Jesus liberta o sacerdote de si próprio, porque a oração de Jesus é o acto comunional no qual o sacerdote é sacramentalmente inserido. Nela, ele nunca está só. A relação dialógica de amor é libertação, porque é comunhão.

Deus é, pois, liberdade de saída de si de cada sacerdote, para ser em Cristo para o Pai e para os outros.

O coração sacerdotal que celebra a Eucaristia, o eterno diálogo Trinitário e a dimensão salvífica desse diálogo na Encarnação, morte, ressurreição e envio do Espírito Santo, celebra já na terra o céu aberto à liberdade da plenitude do amor. E, se reconhece humildemente a sua indignidade humana ao celebrar esta partilha da liberdade divina, talvez deva repetir as palavras evangélicas:

«Bendigo-te, ó Pai, Senhor do céu e da terra, porque escondeste estas coisas aos sábios e aos entendidos e as revelaste aos pequeninos».  E a humildade será, no sacerdote, o perfume da liberdade do seu coração, essa que o seu rebanho sentirá como o bom perfume do Evangelho.

       Quarta feira Santa, Beja, 17 de Abril 2019

Maria Manuela da Conceição Dias de Carvalho

 

[1] Ao doutor da lei o Senhor responderá: «As raposas têm tocas e as aves do céu, ninhos, mas o filho do homem não tem onde repousar a cabeça (Mt 8, 20).

[2] PÉGUY, Le porche de la deuxième Vertu, in OEvres Complètes, 1975, 534.

[3] Caminho de perfeição, cap. V

[4] A Viva Chama de Amor 3, 29-67.

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